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Aprendiz de Teologia e Filosofia

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Vontade Humana (parte 1)

Numa questão do compartilhar, vamos pensar em termos de vontade humana acima do si. Lembrando que para Espinosa, a liberdade é a identidade de si consigo. Ele demonstra que o conatus é o único fundamento da virtude, uma vez que esta não é senão a força do corpo e da mente para afirmar-se como causa adequada (ou causa interna total) de suas ações, isto é, para ser plenamente uma potência de agir (potentia agendi) que encontra em si mesma a causa total de suas ações. Daí a sua recusa da tese cartesiana de que além da razão, há um imperium absolutum da vontade sobre as paixões. Espinosa afirma a moderatio como expressão da potência da mente (potentia mentis) ou imperium rationis, capaz de moderar as forças afetivas e regular racionalmente seus próprios conflitos (CHAUI). Certamente, dentre os aspectos mais surpreendentes e perturbadores da ética espinosana estão a afirmação da necessidade livre ou da livre necessidade, a subversão dos conceitos de paixão e ação, na medida que, ao contrário da tradição, deixam de ser termos reversíveis (a paixão como lugar de recepção de uma ação, seu terminus ad quem; a ação como lugar de onde parte uma operação, seu terminus a quo, posições que podem inverter-se, de sorte que uma paixão será ação e uma ação, paixão) para se tornarem intrinsecamente distintas, de tal maneira que a uma mente passiva não corresponde um corpo ativo, nem a um corpo passivo corresponda uma mente ativa, pois corpo e mente são passivos ou ativos juntos e simultaneamente. Essa mudança conceitual é o que permite a Espinosa elaborar uma ciência dos afetos e não uma teoria das paixões. De fato, a reversibilidade dos termos sempre tornou impossível uma demonstração causal perfeita de cada um deles, pois a causa aparecia como algo nômade, migrando do corpo para a alma e desta para aquele1.
Além disso, a identidade entre o necessário e o livre é inseparável dessa subversão conceitual, que permite ao filósofo demonstrar que, sendo a mente idéia do corpo, aquele que tem um corpo apto à pluralidade de afecções simultâneas tem uma mente apta à pluralidade de idéias simultâneas, de maneira que a liberdade humana é potência para o múltiplo simultâneo quando este se explica apenas pelas leis necessárias de nossa natureza, deixando de identificar-se com o exercício do livre arbítrio como escolha voluntária entre possíveis.
A liberdade não se encontra, portanto, na distância entre mim e mim mesma – distância que, usando a razão e a vontade, eu procuraria preencher com algo que não sou eu mesma –, porém, ao contrário, é a proximidade máxima de mim comigo mesma, a identidade do que sou e do que posso. “Toda coisa se esforça, tanto quanto está em si, para perseverar no seu ser” e “O esforço pelo qual toda coisa se esforça para perseverar no seu ser não é senão a essência atual dessa coisa”; – “O esforço com que toda coisa se esforça para perseverar no seu ser não envolve um tempo finito, mas um tempo indefinido” e “A mente, quer enquanto tem idéias claras e distintas, quer enquanto tem idéias confusas, esforça-se para perseverar no seu ser por uma duração indefinida e tem consciência de seu esforço” (Spinoza). Assim, Espinosa oferece a definição do desejo (cupiditas) como essência do homem: “O desejo é a própria essência do homem enquanto esta é concebida como determinada a fazer algo por uma afecção nela encontrada”. Conatus é o esforço que uma coisa singular realiza para permanecer no seu ser (no corpo, são os movimentos ou afecções internos e externos; na mente, o esforço para conhecer; os dois esforços são inseparáveis e constituem a essência atual de um ser humano). Conatus e cupiditas, isto é, esforço de autoperseveração no ser e desejo são o mesmo. é o único fundamento da virtude, uma vez que esta não é senão a força do corpo e da mente para afirmar-se como causa adequa-da (ou causa interna total) de suas ações, isto é, para ser plenamente uma potência de agir que encontra em si mesma a causa total de suas ações. É essa idéia da li-berdade que permite a Espinosa fazer uma demonstração espantosa, a saber, que se nascêssemos livres isso não significaria que estaríamos inteiramente imersos no bem e banhados pelo conhecimento dele, e sim que não teríamos sequer como formar qualquer conceito de bem e mal, isto é, não teríamos nenhuma experiên-cia de uma distância entre nós e nós mesmos. Porque a liberdade é essa proximi-dade plena de si consigo mesmo e poder para o múltiplo simultâneo, dois afetos alegres3 – um deles passivo e o outro, ativo – a exprimem enquanto processo: a hilaritas, como transitio (ou o equilíbrio interno experimentado na passagem de uma realidade, força ou perfeição menor a outra, maior, ou seja, no crescimento da potência de agir), e a aquiescentia in se ipso, como equilíbrio interior permanente. De fato, em ambos, a totalidade complexa e integrada dos constituintes do corpo e da mente é experimentada como equilíbrio interno, como adequação de si a simesmo e, no caso da aquiescentia in se ipso ou do contentamento interior, como permanência ativa na autocontemplação da potência de agir (Spinoza).
Enfim, não menos desconcertante é a demonstração espinosana de que uma idéia é um afeto e de que todo afeto é uma idéia, ou, em outras palavras, que não há diferença nem distância entre afeto e inteligência porque o desejo (cupidi-tas) é a própria essência do homem “enquanto se concebe determinada por qual-quer afecção a fazer algo” e, como explica Espinosa, “por afecção da essência hu-mana entendemos qualquer constituição de sua essência, quer inata , quer se conceba pelo atributo do só pensamento, quer pelo da só extensão, quer se refira a ambos simultaneamente”.O que significa afirmar a identidade do conatus, da cupiditas e da potentia mentis? Ou melhor, o que significa recusar distância e separação entre eles? Para o que nos interessa aqui, significa, evidentemente, recusar que entre o desejo e a inteligência se interponha a vontade, que esta seja responsável pela ação e que essa ação voluntária seja governar os afetos. Eis por que o enunciado da proposição, que encerra a Ética (e que pusemos como epígrafe de nosso texto), altera o sentido estóico do adágio “a felicidade não é o prêmio da virtude, mas a própria virtude”, ao acrescentar que não fruímos dela porque refreamos as paixões, coerção que o estóico atribuía à vontade, e sim que porque a fruímos, refreamos as paixões, uma vez que a virtude não é senão a potência da mente para conhecer.Assim, um dos aspectos mais inovadores e perturbadores da ética espino-sana está na demonstração de que a vontade não tem absolutum imperium sobre os afetos e que nossa força ou virtude está na força de nossa mente para moderá-los. Essa demonstração, que assume tons e sentidos múltiplos no decorrer da Ethica (dependendo do lugar em que apareça e dos destinatários a que se dirija), possui dois pressupostos básicos. Um deles, examinado sobretudo na Parte IV, é a finitude da força humana, que transparece seja na incomensurabilidade entre ela e a infinidade de forças externas que a rodeiam e atuam sobre ela tanto na ordem comum quanto na ordem necessária da Natureza (de tal maneira que há duas paixões irredutíveis à ação: o medo e a esperança, expressões dos riscos que espreitam a duração do conatus, a qual é, de direito, indefinida, pois ele é um positivo intrinsecamente indestrutível), seja no papel conferido às noções comuns da razão, que asseguram que a virtude é inseparável da concórdia e da compreensão e que, portanto, somente na paixão os homens são contrários uns aos outros porque a paixão envolve negação e contrariedade. O outro pressuposto é a articulação entre absolutum imperium e vontade livre ou livre arbítrio, de um lado, e entre moderatio e inteligência ou razão/reflexão, de outro.

Fonte:
CHAUI, Marilena. Imperium ou Moderatio? Publicação do Depto. de Filosofia, FFLCH-USP.
ESPINOSA, B. de. Spinoza Opera. Ed. de C. Gebhardt. Heidelberg: C. Winter, 2ª ed. 1972, 4 tomos.
CHAUI, M. Ser parte e ter parte: servidão e liberdade na Ética. Discurso, no 22, 1993, p. 63-122 (publ. do Depto. de Filosofia, FFLCH-USP).

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